quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

As aves que aqui gorjeiam...

Calvin: Mamãe! Mamãe! Acabei de ver o primeiro robin da primavera! Ligue para o jornal, rápido!
Rá, rá, rá. Uma matéria de primeira capa! Uma placa comemorativa! Uma cerimônia cívica! Tudo para mim! Uhu! Uhu!

Calvin: Ó, puxa! Devo aplicar o dinheiro do prêmio ou gastar tudo de uma vez? Não acredito que consegui!
Mãe: Calvin...
Calvin: É um mundo duro, cruel e amargo no qual devemos crescer, Haroldo.
Haroldo: Alegre-se! Eu contei que vi um
robin ontem?


Uma das grandes dúvidas na hora de traduzir é o quanto “adaptar” o sentido do texto para o universo do público final.

Por exemplo, quem se lembra de quando a turma do Chaves foi viajar para a praia e a chamaram de Guarujá? Ora, no original, eles iam para Acapulco, mas os telespectadores brasileiros tiveram de engolir que os moradores da vila estavam aqui no litoral de São Paulo.

Além disso, lembro-me de já ter visto referências como “as cassetadas do Faustão” nas legendas de seriados de comédia, para não perder a piada.

Isso é certo? Errado?

Na minha opinião, depende do caso.

Há algum tempo, eu estava traduzindo um livro infantojuvenil sobre uma menina judia que estava presa em um gueto na Tchecoslováquia durante a Segunda Guerra Mundial. Ela contava que uma amiga, que tinha muito talento para o desenho, havia feito um retrato de um robin que pousara na calçada do gueto.

O robin é um passarinho muito fofo que marca presença na Europa e no norte da África.  Na hora de traduzir, fiquei com uma dúvida: duas meninas observando um passarinho que, para elas, era tão comum a ponto de saberem seu nome... Como reproduzir isso?

No Brasil, talvez algo assim acontecesse com um sabiá, um bem-te-vi ou um beija-flor. Mas um pisco-de-peito-ruivo? Será que os leitores pré-adolescentes saberiam o que é?

Muitos livros infantis fazem adaptações, principalmente com animais, para figuras mais conhecidas pelas crianças brasileiras. Porém, como eu poderia colocar um sabiá em um gueto da Tchecoslováquia? Além disso, pré-adolescentes não são mais crianças.

No final, acho que vai ser bem interessante se eles não fizerem ideia do que seja um pisco-de-peito-ruivo. Pesquisem! E aprendam :) Vocês vão adorar!

Robin/Pisco-de-peito-ruivo. Fofo, né?

PS: O robin do qual Calvin fala na tirinha é o robin americano. Ele é chamado assim por se parecer com o colega europeu, mas as duas espécies não têm parentesco.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

“O que somos para além do que vamos sendo?”






O livro Fazes-me falta esperava na pilha de “leituras urgentes”, que sempre sabotamos, havia pelo menos dois anos. Só este mês consegui finalmente devorá-lo. Escrito por Inês Pedrosa, escritora portuguesa que ganhou vários prêmios, surpreendeu-me pela delicadeza e leitura envolvente.

O romance, se compõe de duas vozes distintas: de um homem maduro, incrédulo e conservador, que tem todo seu histórico permeado pelo salazarismo, guerras nas colônias e desilusões amorosas, e de uma jovem idealista, abismada em Deus, traumatizada pela perda dos pais quando ainda criança e por um relacionamento anterior desastroso.

Uma narrativa insólita, em que os dois personagens mantêm um diálogo incomunicante, partido. Ela acabou de morrer e lamenta, pois não se conforma a esse novo estado, uma sobrevida num lugar a que chama noante; ele sofre com a separação brusca e definitiva, e expressa suas dores. Ambos em vida tinham uma amizade íntima, mas nunca chegaram a ser amantes. Agora, que a morte se interpôs, se ressentem da não entrega. Privilegiaram a amizade, que nunca se esgotaria como acontece fatalmente com as relações amorosas. Na verdade, os dois carregavam desilusões tamanhas que a ideia era de se autopreservarem. Imaginaram uma relação estanque, ideal, sem cicatrizes ou mágoas, tipicamente dos nossos tempos. Enfim, uma interação pessoal anódina. Só após a morte dela perceberam que uma linha tênue separava a amizade da paixão.

A própria solução gráfica do livro reitera a distância entre os dois. Em breves capítulos, os dois se alternam em dissecar a relação. Quando ela fala, a tipologia é delicada e em corpo menor, como se sussurrasse ou falasse de longe. Nas falas dele, a fonte é mais limpa, sem serifas e em tamanho maior, ou seja, ele está vivo, e mais perto de nós, leitores.

O trato das palavras pela autora e a própria tessitura do romance dão o tom a uma prosa lírica, com desdobramentos da vivência de duas gerações diferentes num Portugal contemporâneo. E como não poderia deixar de ser, no texto está escancarada toda a alma nostálgica portuguesa e a saudade como legado.



Trecho:


“Há tantas coisas que nunca te disse — e dizias tu que eu falava demais. Flutuo
por este noante em busca dessas palavras a menos, atravessadas entre nós
como um longo corredor de prisão. Em vida, sussurrava: não te perdoo o que
não soubeste saber de mim. Este noante revela-me a verdade invingada: não
me perdoo o que não soube verter-te de mim.”



Cumps.

Uma pausa para o riso

E se houvesse teste de DNA na época de Dom Casmurro?

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